Ao fechar o portão
enferrujado de casa, encarei nosso sobrado de uma maneira nunca feito antes.
Ele parecia assombrado, não, parecia que iria me devorar. Dava para confundir
nitidamente suas janelas como olhos. O ninho do João de barro como nariz e a
porta da sala como a boca que rangia feroz pela velhice. Passei pelo barbeiro
Ricardo, mas ele que sempre cumprimentava a todos fumava incessantemente na
guia da calçada e abaixou o rosto fingindo limpar uma cinza inexistente quando
passei. Começou a garoar. Corri até o ponto de ônibus. Uma velha controlava o
refluxo. Mas quando cheguei, ela me olhou com uma maneira estranha. Suas
pupilas se dilataram. Nervos apareceram em seus olhos. Ela começou a babar e
tirou de dentro sua língua peluda. Nesse momento o ônibus chegou, eu dei sinal
correndo, corri até o sinal para entrar. O motorista parecia ter anorexia. Com
sua pele negra manchada de vitiligo, ele resmungou pelo meu atraso. A cobradora
não parava de se deliciar com um x-tudo. Lambuzava os lábios e deixou cair os
picles na roleta.
Quis mata-la pela minha mão lambuzada. Sentei
próxima a porta. Alguém me cutucou eu me virei e aquela idosa do ponto mexia a
papa caída numa maneira pavorosa. Como ela entrou no veículo sem eu ver? Dei
sinal e resolvi ir a pé. A chuva agora aumentava. Pular as poças era
extremamente gelado. Passou pelo enorme jardim que ladeava a igreja. Era
Thalles? Ela parou um instante. O garoto dos seus sonhos cortava e acariciava
as rosas como se fossem da família. Chamou-o, mas ele ao virar-se para mim
transformou-se em um belo coelho e saiu a disparar por aquele labirinto.
Larguei a mochila. Corri até seus... Sua toca? Ele havia desaparecido por um
buraco ao pé de um carvalho. Uma freira percebeu que fazia de todas as maneiras
para entrar no orifício e veio me chamar de porcalhona pelo vestido e por uma
portinha lateral de mosaico me levou para dentro. Estava atrasada para a
catequese. Tentei pegar minha mochila, mas ela não me deixou. Uma árvore de
natal imensa despencou assim que ela passou pelo santíssimo. Ela começou a
chamuscar.
Pegar fogo, até que virou um
horrível corvo azulado, piando para mim, tentou me beliscar com o bico, mas dei
um chute e piando desesperada quebrou a janela do teto pela qual agora entrava
um feixe de luz ensolarado insuportável. Um grunhido. Minha nossa!!! Um
dinossauro acabara de quebrar o ferro da janela e entrara com sua pata imensa
para esmaga-la. Ela começou a correr para tudo quanto é quanto, gritando por
socorro. Chegou a sua sala e percebeu estava vazia, exceto pela tampa da privada
no banheiro dos fundos que abri a fechava ferozmente. Rolo de papel higiênico
era desenrolado bruscamente por algo do além. Tentou se esconder no armário de
madeira, mas acabou percebendo que ele não tinha chão. Começou a cair por
aquele buraco, desesperada começou a gritar. Até que caiu de cara num riacho
azulado de cristal. Percebeu que agora ela não estava mais dentro dela.
Conseguia vê-la. Ela não era mais ela. A alma dela não estava mais lá. Ouviu um
piano distante, calmo manso. Seu reflexo não aparecia mais naquela água que
caia pitorescamente por entre as rochas. Seguiu a canção. Um homem de smoke
preto tocava sem se cansar, observou-o depois de se adentrar por mais naquela
gruta. Ele tocava tão graciosamente. Sentia como se tocasse sua alma com os
dedos tão finos e compridos. Era um choro de esperança. De repente sentiu
conhece-lo por muitos anos. Ele parou a música. Chamou-me. Fabiana. Novamente
eu me vi dentro de mim. Não era mais a terceira pessoa, era a primeira da minha
vida.
Ele se transformou no
Thalles. Era o amor da minha vida. Toquei-o. Era real. Chorei. Lágrimas
salgadas temperaram o canto dos meus lábios. Desejei estar ali para sempre. Meu
príncipe perfeito. No entanto, um lustre de velas despejou-se do teto. Não deu
tempo de gritar. Apagou-se tudo.
Era neve. Levantou-se. Era
sim no vidro daquela janela pelo lado de fora, caiam flocos delicados. Sentiu
um perfume doce de café. Era o café de sua mãe. Olhou em volta. Percebeu que
estava numa imensa biblioteca. Já estivera ali, quando criança. Espere um
minuto. Ela estava se enxergando novamente. Esta fora dela. Mas o que significa
aquilo? Uma velhinha passou com arrumando o xale próximo. Sua voz. Vovó? Mas
como era possível. Ela morrera quando tinha cinco anos. Mas não importava. Era ela
sim. Que bom que estava de volta. Saiu disparada passando a mão nas instantes,
gritando seu nome. Mas ela parecia não me ouvir. Não vi a escada. Sai rolando,
rolando, até cair de bunda no tapete do térreo. Ela caminhava em direção à
porta. Mas que sobra era aquela lá fora. Não me diga que era o Dinos...NÃOOOOO.
Um caminhão em alta velocidade a atropelara e atirara para longe. Berrou. A voz
ecoou pelo salão. As pessoas a encararam, mas pareciam não ver o acidente.
Estavam indiferentes. Por que ela só via? Seus pés caíram num roller e saiu
deslizando pela porta de entrada até a varanda? Estava num imenso prédio de
cinquenta andares. Avistou a rua lá em baixo. Sentiu medo, berrou. Mãos
apertaram-lhe o ombro. Era seu pai ele ria coringamente. Empurrou-me. Eu cai...
cai...Eu ia morrer, Nãooooooooo...
Acordei. Árvores tampavam
minha visão. Ao me dobrar, percebi que estavam num enterro. Tia Elisabeth.
Carlota. Henrique, até você Thalles? Todos pararam um instante, alguém notara
minha presença. Ela está viva! Todos aplaudiram. Recebi abraços calorosos, menos
dele que fugia. Pegue ele, eu gritei. Agora tudo fazia sentido. Fora ele que me
jogara do prédio. Ele havia causado o meu acidente. Mamãe comentara que eu
ficara em coma, mas não importava tinham que pegá-lo. Meus tios correram até
ele, mas antes que fizessem alguma coisa, um ônibus o atropelou. Ele caiu morto
no asfalto. Mas não era qualquer ônibus. A zoom foi aumentando como enxadadas
fatais. Aquela velha de língua peluda piscou para mim do vidro. Veio buscá-lo.
Se chamava :

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